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Olhares

Da série: Marasmo cotidiano1

E meu olhar cruzou com o mais belo olhar que já observei. E os olhos eram negros como a noite. Ela percebeu e sorriu, virou-se e partiu.

Caminhando pelas ruas sinuosas do Setor Sul, eu apreciava a decadência daquela fracassada cidade jardim. O som dos passos ecoando pelas calçadas vazias, o cheiro de vegetação seca e o toque frio do ar noturno me faziam sentir intimamente ligado a esses espaços abandonados, pois eu mesmo era uma alma sem cuidado.

Foi em uma dessas aventuras solitárias que me deparei com os mais belos olhos que já havia visto. Olhos caramelos, que pareciam brilhar como estrelas no céu escuro da noite. Eu fiquei parado, observando-a com todo o cuidado, tentando não ser percebido. Não queria que ela fosse embora, não agora que eu havia encontrado alguém que parecia entender minha solidão. Ela percebeu meu olhar e sorriu, virando-se e caminhando em direção ao horizonte, deixando-me com a sensação de uma promessa não cumprida.

Os raios de sol que se infiltravam entre os galhos e folhas criavam formas circulares e semicirculares que contrastavam com as sombras, desenhando flores de luz sobre o corpo alvo dela. Era a visão de um anjo, na minha recém concebida definição de anjo para adjetivar aquela que era a criatura mais bela que já havia visto.

Ela se moveu com graça e leveza, perambulando por entre os arbustos com a sutileza de uma bailarina em uma peça de Tchaikovsky. Era graciosa, harmoniosa, sedutora e redentora. Mas infelizmente, alguém a chamou.

— Mel! Venha aqui! — a dona da gatinha de pelos brancos e olhos caramelo chamou.

E assim, ela foi encontrar conforto nos braços da dona. Uma pena, eu estava pensando seriamente em adotá-la.

Eu sai do meu estado paralisado de êxtase e recomecei a caminhar. Depois de uns cinco ou seis passos, olhei para trás, queria vê-la uma última vez. E meu olhar cruzou com o mais belo olhar que já observei. Os olhos eram negros como a noite. Ela percebeu e sorriu, virou-se e partiu, deixando-me com a sensação de uma promessa não cumprida.


  1. Publicado originalmente em minha antiga conta (excluída) no Medium. Última modificação em 5 de fevereiro de 2023. ↩︎