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Jabuticaba

Da série: Inspirado em Poemas Quaisquer1

Eram aqueles “olhos de jabuticaba”, que nem mesmo todas as constelações da Via Láctea juntas conseguiam competir em brilho e esplendor.

Sentado em uma desconfortável cadeira de madeira rústica, com uma garrafa - não um copo - na mão e o controle remoto do televisor na outra, assistia a algum programa de plateia idiota, daqueles tão comuns nos canais abertos que não acrescentavam nada de útil - salvo exceções - à minha vida cotidiana.

Ouvi o telefone tocar (por incrível que pareça, ainda há quem use telefone fixo residencial) e levantei-me para atendê-lo. Não consigo imaginar uma melhor maneira de descrever a sensação de levantar daquela cadeira após horas sentado e descendo goela abaixo intensos goles de rum. Primeiramente foi de alívio, como quando se passa antisséptico em uma arranhão e se descobre que ele não arde. Em seguida veio o formigamento e o molejo. Não sentia as pernas e mal conseguia movê-las para sair do lugar. Mas o pior foi quando a sala de estar girou ao meu redor de forma muito semelhante a quando se está em um daqueles carrosséis dos antigos parques de diversões itinerantes (e assim entrego a minha idade). Com muita dificuldade e com uma dor de cabeça tão horrível que parecia haver uma rinha de galos dentro do meu crânio, caminhei até o telefone, tirei-o do gancho e arrastei um “alô” tão longo quanto só um bêbado poderia fazê-lo. Mais tarde, encontrava-me à porta da casa de Ana Carla, com meus trêmulos e longos dedos finos oscilando entre tocar ou não a campainha.

Ela sorriu e estendeu os braços para me envolver com seu calor e perfume.

“Você chegou cedo, ainda não me arrumei”, ela disse. Sua voz me envolvia em uma nuvem mística de prazeres e desejos proibidos. Era música aos meus ouvidos e alimento para a alma.

Ana Carla sempre teve o péssimo hábito de se arrumar depois do horário marcado para nos encontrarmos e também em demorar um pouco mais que uma hora para se sentir satisfeita com a imagem que via refletida no espelho. Não havia alternativa a não ser esperar. E eu sabia, a espera valeria a pena.

Perambulei pela sala observando os quadros que emolduravam clássicos pôsteres da década de 50. Terror e ficção-científica eram seus gêneros prediletos, assim como os meus. ‘Creature from the Black Lagoon’, ‘Invasion of the Body Snatchers’, ‘The Fly’, ‘The Blob’, ‘The Thing from Another World’, ‘Gojira’ […], ‘The Alligator People’, ‘The Disembodied’, ‘Curse of the Demon’, ‘My World Dies Screaming’ e tantos outros. Na estante, dezenas de livros entre prosas, poemas, novelas, romances e ensaios. Era um verdadeiro paraíso para um amante de literatura e cinema de terror como eu. Os enfeites luminosos de cristais, a poltrona de vime e um pequeno porta-retratos de tamanho de um cartão de crédito, onde se podia ver uma fotografia desbotada. Ana Carla usava um longo vestido florido e um chapéu de palha enquanto cavalgava um cavalinho daqueles de parque nos quais se inserem moedas para poder passar cinco minutos balançando para frente e para trás. Seu característico sorriso denunciava a felicidade que sentia com a pequena travessura. Fazia alguns anos que havia vendido a minha Lomo que usei para registrar esse saudoso momento. Um calafrio percorreu minha espinha ao ver que ela guardava a fotografia. Tive vontade de pular e dar cambalhotas, abrir a janela e descer livre por oito andares até abraçar a calçada de concreto lá embaixo. Esbocei um leve sorriso…

“Estou pronta”, ela disse. Me virei para vê-la.

***

E lá estava ela, linda e sublime, com seus longos e ondulados cabelos negros. Sua pele alva e aquele sorriso encantador digno de um ‘da Vinci’. E claro, aqueles “olhos de jabuticaba” que nem mesmo todas as constelações da Via Láctea juntas eram capazes de competir em brilho e esplendor. Ela era uma escultura de Michelangelo, uma prosa de Cervantes, um romance de Assis. Era a garota que tantas vezes me agraciou com seu vislumbre na escola, a quem eu observava e absorvia com os olhos. Aquela garota alegre e agitada que dançava livre e desengonçada pelo pátio durante o recreio. Graciosa e atrevida, inteligente e gentil, agressiva quando necessário. Sempre usando camiseta preta, calça jeans desbotada e um ‘Chuck Taylor All-Stars’ surrado.

Meu coração acelerou, era como se em minhas veias, ao invés de sangue, corresse eletricidade. Era como se… Como se eu tivesse voltado no tempo naquele exato momento em que a vi pela primeira vez. Uma nuvem de gafanhotos me devorava de dentro para fora e enquanto me rasgavam para sair, eu era colocado em uma gigante máquina de costura industrial para evitar que os insetos escapassem.

“Obrigada, Roberto. Se não fosse por você, eu estaria muito ferrada”, ela disse.

“Vamos?”, perguntei.

Descemos os oito andares sem trocar palavras enquanto os alto-falantes do elevador insistiam em tocar uma música polifônica chiclete, que tenho certeza, levei semanas para esquecer. O motorista já nos esperava à frente do prédio. Entramos no carro e o motorista deu a partida.

***

Enquanto seguíamos em direção ao nosso destino, as luzes da cidade transpassavam pelo vidro e acariciavam as faces de Ana. Neste momento, eu já a chamava apenas de Ana, sempre com um sorriso de canto e a alma bailante. Ana, música e poesia. Estava chovendo naquela noite e os semáforos, outdoors, painéis de neon, fachadas de lojas, faróis e tantas outras luzes, projetavam esplêndidas sombras coloridas que desenhavam e destacavam cada magnífica e maravilhosa pequena imperfeição do rosto perfeito de Ana. Um paradoxo no qual eu me deleitava em observar.

“Quer ouvir algo?”, ela perguntou. “Motorista? Posso sintonizar o rádio?” Era típico dela, perguntas sem expectativas de resposta, seu modo particular de dizer “vou fazer” ou “estou fazendo”.

Faço promessas malucas Tão curtas quanto um sonho bom Se eu te escondo a verdade, baby É pra te proteger da solidão

Faz parte do meu show Faz parte do meu show, meu amor

E prosseguimos assim, por todo o caminho. Cada um em seu lado do assento de passageiros, as luzes da cidade projetando sombras e exaltando a graciosidade de Ana, e um quase silêncio quebrado apenas pelo motor do carro, os sons da vida noturna em uma capital e as músicas de Cazuza no rádio.

“Foi bom estar com você, filho da puta”, ela disse enquanto repousava a cabeça pro sobre meu ombro. E outra vez mais, minha alma bailou ao som da música que emanava em cada palavra pronunciada por ela.

***

“Acorde! Chegamos.”, eu disse. Ana abriu os olhos lentamente e sorriu.

“Mas já? Acho que devíamos pedir ao motorista para dar uma volta em torno do quarteirão. Quero aproveitar um pouco mais”, disse em tom travesso.

Se eu pudesse, faria exatamente o que ela me pediu. Ainda mais eu, que nunca soube dizer não para ela. Mas aquela era outra situação.

“Vamos! Desça. Está atrasada”.

Ela se levantou, mas não sem esboçar uma expressão de descontentamento e dengo. Olhou para frente e depois para mim. Então, ela sorriu.

“Obrigada. Amo você.”, ela disse.

Eu fiquei ali, observando-a subir os degraus que a levariam à Catedral. Lá dentro, todos a esperavam.

***

Duas semanas depois, ainda com a música do elevador ecoando em minha cabeça, encontrei Ana em uma cafeteria da cidade. Não a havia visto e por isso ela pôde fazer uma de suas brincadeiras preferidas, chegar sorrateiramente por trás de alguém, cobrir-lhe os olhos com as mãos e perguntar “Quem é?”. Como se fosse possível não saber. Sua voz, sua música, sua poesia eram inconfundíveis.

Virei-me e esforcei um sorriso. E lá estava ela, a garota que tantas vezes me agraciou com seu vislumbre na escola, a quem eu observava e absorvia com os olhos. E enquanto sorria e gesticulava alegremente ao falar, meus olhos poderiam ter visto no seu anelar esquerdo o brilho de um diamante. Mas eles não viram. Meus olhos só conseguiam ver o sorriso e o olhar de Ana, aqueles lindos “olhos de jabuticaba”.


  1. Publicado originalmente em minha antiga conta (excluída) no Medium e inspirado no meu poema original Jabuticabas↩︎