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Lascívia

Da série: Sem Série1

A lua está linda esta noite, tão linda quanto a puta nua sob os lençóis em minha cama. Sarcasticamente perdoem-me o linguajar crianças. Sei que seu puritanismo hipócrita lhe dá uma pontada nos rins nessas situações e, se permitem dizer, eu não ligo a mínima para seus falsos ideais sobre condutas e moral.

Voltemos à lua e a puta.

Gosto de ter esses momentos após uma noite de sexo casual e culposo, aquela exata categoria de sexo em que não há orgulho mas também não há remorso. Aconteceu, foi prazeroso durante o ato e só, depois não há mais nada. Ao menos tem sido assim durante muito tempo, mas não hoje. Hoje há algo diferente. O cigarro entre o indicador e o anular de minha mão esquerda queimou totalmente, as cinzas voam ao vento enquanto me perco nestes pensamentos. De fato essa noite não é como as outras, olhando aquele corpo nu cheio de curvas, com sua pele dourada e seus longos cabelos negros, eu me pergunto se estou feliz. E a resposta é um sonoro e claro “não”. “Estou infeliz? Não”. “Indiferente”, essa seria a palavra que melhor me descreve, mas também me sinto mórbido. “É possível ser mórbido e indiferente? Tudo no mesmo pacote? Acho que sim.” Quase todas as noites bagunço os lençóis com uma companhia diferente. Altas, baixas, magras, gordas, negras, asiáticas, indígenas, solteiras ou comprometidas. Meus dias e noites tem se resumido a festas, bares, destilados e cigarros de maconha. No fim termino com uma ou duas garotas no quarto do meu pequeno apartamento na zona sul da cidade. Nunca tenho a intenção de procurá-las no dia seguinte, marcar um jantar ou ir ao cinema. Na maioria das vezes, nem mesmo sei seus nomes. Temos um acordo, antes do nascer do sol vista suas roupas e vá embora, sem despedidas.

Como a maioria dos homens dessa porcaria de cidade, eu sou um canalha. Não sei se decidi ser um ou se me transformaram em um como consequência de crescer sob a custódia ideológica desta sociedade medíocre. Seja eu um subproduto do patriarcado ou não, continuo sendo um perfeito canalha. Perfeito não, a canalhice vem das imperfeições, de fato, sou um imperfeito canalha. Mas se permitem me defender, sou um canalha com escrúpulos, tenho uma conduta ética a seguir. Nunca iludi nenhuma das garotas e mulheres sobre quem sou ou minhas intenções. Se elas terminaram na minha cama é porque assim como eu, elas procuram desesperadamente preencher seu vazio com as futilidades efêmeras dos prazeres carnais. Ou talvez elas apenas quisessem um pouco de sexo sem compromisso, sem nenhuma tensão existencial inconsciente. É completamente possível.

Esta noite não foi diferente, não até este momento. Após algumas doses de bourbon e uns dois passos de tango ambos estávamos despindo uns aos outros ainda no hall de entrada enquanto esperávamos pelo elevador. Creio não ser necessário detalhar o que veio a seguir mas para deixar essa narrativa menos detestável ofereço um pouco de poesia:

“No silêncio frio da noite no sétimo ou talvez fosse o décimo sétimo beijo… Os olhos dela brilharam, como se todas as estrelas da galáxia ali estivessem. Era de um brilho esplendoroso, uma nuance de todas as cores fundidas em um branco de textura rústica e aroma de felicidade. Seus lábios vermelhos, pintados a batom — talvez tivessem sido desenhados a mão pelo próprio Da Vinci — sorriam destacando os aspectos que valorizavam cada elemento que compõe sua boca. As linhas curvas de seu corpo fundiam-se a uma idealização da realidade, subjetivando o mundo exterior e tornando-a um ideal sublime e encantador. Sua imagem presenteava-me com uma experimentação de sensações extremas, guiando-me a um paraíso artificial entre teus braços, perdido no labirinto de seus beijos, uma aventura vivenciada nos sentimentos supracitados…”

Após uma fervorosa noite de trocas de fluídos, gemidos, suspiros e gozadas, levantei-me e como de costume vim para a sacada saborear um Marlboro vermelho. Até então não havia me dado conto de que desta vez havia fugido ao roteiro. Foi apenas após a primeira tragada do segundo cigarro, olhando minha sobra projetada contra a parede do outro lado do quarto que meu dei conta do ocorrido.

“Vi nas sombras um tedioso eu sendo arrastado por uma pretensa poetisa barroca nas entrelinhas de poesias vazias apenas para no fim acabarmos sem roupa. Calorosos corpos nus sob lençóis, suados e entrelaçados, assinando com unhas na pele um do outro sua selvageria primitiva. Com beijos vermelhos selamos o implícito contrato de não fidelidade, pertencemos a nós mesmos e é só. No olhar entrecruzado gritamos e evidenciamos sem desespero a solidão que não nos abala. Ela então parte sem dizer adeus e isto me excita, não precisamos fingir cumplicidade. Não nos veremos mais e muito provável, não tornaremos a lembrar esta noite. Exceto talvez pelo poema que ela escreveu com os dentes em meu pescoço. Mas como tudo neste mundo, ele irá desaparecer e junto qualquer lembrança e vestígio daquele fugaz romance de primavera.”

Eu me percebi odiando este roteiro, não queria que terminasse assim, não desta vez. Na minha frente imagens aleatórias começaram a se projetar, imagens nítidas de pensamentos que jamais imaginei, eu um dia teria. Mãos dadas em um passeio pela praia, sorrisos durante um pique-nique em um parque, crianças correndo e gritando no jardim de uma casa de campo…

Agora, a morbidez e a indiferença parecem se dissolver em misto de emoções ainda mais confusas e indescritíveis. Meu estômago se retorce, minha cabeça dói e mal consigo respirar. Caminho cambaleante até à cozinho e bebo água direto da torneira, espero um pouco para me recobrar e volto para o quarto. Ainda fico alguns minutos em pé diante a cama antes de me decidir por deitar. Fiquei ali pelos últimos minutos que restavam antes da hora dela partir.

“ Por alguns instantes descuidei-me, e quando percebi, meus olhos encontravam-se com os dela. Lindos olhos brilhantes, como uma centena de estrelas. Ela sorriu. Um sorriso tímido, daqueles que pedem desculpas desnecessárias. Em resposta, sorri de volta, desviei o olhar e ela se levantou. Partiu sem dizer nenhuma palavra.

Naquela manhã enquanto apreciava meu café sem açúcar lembrei-me daquele sorriso e me descobri apaixonado.”


  1. Publicado originalmente em minha antiga conta (excluída) no Medium sob o título Sobre Amor e Outras Drogas↩︎