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Assíncrono

Da série: Memórias Invisíveis1

São 11 horas e 45 minutos de uma manhã de segunda-feira. Sei disto não por causa de meu relógio de pulso inexistente ou o relógio de parede. Sei disso pois meu coração dispara.

O corpo humano é uma obra prima da bioengenharia, o modo como ele funciona é fascinante. Controla a entrada e saída de nutrientes, monitora a temperatura, gerencia a distribuição de energia, cada sistema se comunica perfeitamente com o outro. E dentre os vários fascínios desta máquina biológica, o modo como ela calcula o tempo, este criado por nós, e nos envia – no momento certo - uma mensagem dizendo “está na hora”, é um dos que mais admiro.

São 11 horas e 45 minutos de uma manhã de segunda-feira, sei disso porque meu coração dispara. Isto porque um fluxo contínuo de substâncias químicas se misturam ao meu sangue. Adrenalina, noradrenalina, feniletilamina, dopamina, oxitocina, a serotonina e as endorfinas, dentre outras que não sei o nome.

São 11 horas e 45 minutos de uma manhã de segunda-feira, sei disso porque meu coração dispara, as mãos suam, a respiração fica pesada e com olhar perdido observo obsessivamente o telefone. Tudo em vão. Por mais que eu negue, sei que ele não vai tocar, que ela não vai ligar.

Em sua última ligação, a menos de duas semanas atrás, seu tom de voz era gélido e distante. Não foi de muitas palavras. Perguntou se recebi o livro que ela me enviou - um que havia emprestado à ela - e me pediu para juntar suas coisas que ficaram em casa, colocar em uma caixa, provavelmente de sapatos, e queimar tudo. Desligou o telefone sem se despedir - melhor assim, não gosto de despedidas.

Não tive coragem de colocar fogo em suas coisas - na verdade acho um tanto quanto melodramático - sou um maldito colecionador de lembranças, guardo tudo o que é possível guardar, confesso até, que às vezes gosto de pegar as ‘caixas de lembranças’ e retirando objeto por objeto, reviver os saudosos momentos - muitos deles, a maioria na verdade, um tanto quanto deprimentes.

São 12 horas e 0 minutos de uma manhã de sexta-feira e ainda aguardo por uma ligação. O cigarro sobre a mesa se desfaz em cinzas - e logo irá deixar uma marca sobre a madeira - e o álcool do uísque ao seu lado, evapora. No rádio, a música Perfeita Simetria toca em seu ritmo acelerado e eu, afundado na poltrona, deixo meu sangue escorrer e manchar o carpete dourado.


Faz alguns anos que esta cena ocorreu. Hoje, quando olho meus pulsos e observo os desenhos em preto e branco das tatuagens que disfarçam as cicatrizes, me pergunto se faria algo de diferente e a resposta é um claro e sonoro “não”. Fiz o que acreditava ser possível fazer naquele momento, o que eu podia, o que eu era capaz. É comum olharmos para nosso passado e querermos nos posicionar com a percepção e sabedoria do presente. Mas aqueles que ficaram para trás não eram quem somos agora, não podia perceber as situações como as percebemos agora, tampouco tomar as mesmas decisões que hoje tomaríamos. Estou em paz com minhas escolhas, mesmo que hoje eu faça outras, diferentes das que fiz. O tempo, dentre suas particularidades, nos permite mudar, mesmo que permaneçam os mesmos. Aquele jovem se embebedando e enchendo seus pulmões de fumaça, é o mesmo eu de agora, mas eu não sou mais aquele jovem.



  1. Publicado originalmente em minha antiga conta (excluída) no Wattpad. ↩︎